terça-feira, 21 de abril de 2009

DISCOS

SaGRAMA
Talvez um ouvinte belga ou canadense possa sentir na música instrumental do SaGRAMA apenas o que ela tem de música – música meramente som, meramente beleza para os sentidos. Para um nordestino, no entanto, ela é uma música encharcada de contexto. Cada melodia e cada cadência vem arrastando consigo um sem-número de paisagens, nomes, rostos, histórias, recordações. A música tem esse aspecto curioso, de ser talvez a mais abstrata das formas de arte, e ao mesmo tempo atingir diretamente nossa memória emotiva, e despertar num instante todo um cenário de referências concretas. Um simples toque de percussão, um simples dueto de violas traz consigo uma sociedade inteira, um modo de vida, uma fatia da História, um momento da nossa infância. As emoções humanas são as mesmas em todo canto, mas em cada lugar são moldadas pelo ambiente e pela cultura. Em termos de Arte, uma emoção é a soma entre a emoção pura, primordial, e o contexto que a modificou. É esse contexto que dá aos nossos sentimentos o sotaque de um povo, a fisionomia de um lugar, assim como o ar que respiramos é sempre o mesmo, mas se transforma num som diferente ao ser modulado por uma flauta ou uma sanfona.Existe música universal. Não porque ela brote no universo inteiro ao mesmo tempo. Cada música nasce em um lugar, tem o perfil daquele lugar, mas a partir dali se expande em círculos cada vez mais largos. Em alguns casos ela se universaliza pela força simples de suas formas, capazes de encantar quem tenha sensibilidade para entendê-las. Em outros, porque atinge platéias informadas sobre seu contexto de origem e interessadas em conhecê-lo melhor através da música que produz. E em outros, ainda, pelo poder multiplicador do investimento comercial. Este disco do SaGRAMA tem um grande número de canções familiares ao público brasileiro; ali estão Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Quinteto Violado, tantos outros. Mesmo quando emergem as composições originais do grupo, logo percebemos os timbres, as texturas sonoras, as tensões e resoluções melódicas tão familiares à nossa maneira nordestina de imaginar a música. Mas existe nessas melodias o dedo erudito, que provoca deslocamentos sutis, fazendo com que a frase musical que nos parece familiar seja composta de outras notas, que não são exatamente as mesmas em que pensaríamos instintivamente. Não se deve, contudo, ficar repisando essa distinção entre popular e erudito. Há um movimento instintivo na nossa cultura no sentido de achar que são modos antagônicos de criar, ou, na melhor das hipóteses, que o popular é uma forma rudimentar de criação e o erudito é o objetivo final desse processo. O modo popular e o modo erudito de fazer música são caminhos diferentes, mas que podem convergir. São reflexo de uma sociedade com diferentes culturas justapostas. São linguagens entrelaçadas, simultâneas; existem para se interferir mutuamente, não para se transformarem uma na outra. Na música do SaGRAMA, esses dois modos se combinam como se combinam numa xícara o leite e o café; a boca que procura o sabor de um ou do outro nunca deixa de encontrá-lo. É o mesmo território fronteiriço onde atuam dois dos convidados deste disco, Wagner Tiso e Yamandu Costa. Músicos para quem, antes das categorias e das nomenclaturas, vem a substância sensorial da música. A música que vale por si mesma, antes dos contextos culturais; e, entrelaçada a ela, a música-referência, a música que reconhece os contextos de origem, percebe a verdade humana por trás da beleza abstrata, e dialoga também com ela.

“O maestro Sérgio Magnani, em seu livro Expressão e Comu nicação

na Linguagem da Música, escreveu, em uma ligeira análise sobre o novo e o original: ‘Há épocas, como a atual, que parecem obcecadas pela preocupação de descartar tudo o que pode lembrar o passado, mesmo sendo ele recente’. No momento em que o trabalho musical estabelece, como prioridade o entendi mento desse passado, descartá-lo seria, não apenas um ato inadequado, mas, impossível. Chega-se, então, ao âmago da questão. Como fazer com que o passado se assemelhe ao novo? Magnani acentua, ainda em seu livro: ‘O novo como tal não importa, sim enquanto original; porque o novo pode se repetir como nos processos tecnológicos e na produção artesanal de interesse, unicamente, profissional mas só o original é irrepetível’.

O escritor Unamuno registrou em seu prólogo às poesias escolhidas de Machado: ‘a originalidade não consiste na novidade dos temas, mas na maneira de os sentir’. Eu acrescentaria: e de os transmitir. É o que ocorre com essa parceria SaGRAMA e o Projeto 500 anos - Um Novo Mundo na TV, da Fundação Joaquim Nabuco, através da Massangana Multimídia Produções. Esta série de vídeos com bonecos iniciada em 1998, focaliza a formação e o desenvolvimento de nossa sociedade, atingindo um público de 28 milhões de alunos da rede pública, em todo o país através da TV Escola do Ministério da Educação. Para criar a trilha sonora do módulo `Brasil-Império’, foi escolhido o grupo SaGRAMA. A direção musical do trabalho é de Sérgio Campelo, líder do grupo composto por músicos de formação erudita adquirida no Conservatório Pernambucano de Música, instituição que vem projetando verdadeiros destaques na música brasileira. No caso espe cífico deste trabalho, o SaGRAMA procura reinventar a música do Brasil na época do Império. Este cd conta, ainda, com a participação especial do grupo Faces do Subúrbio, na faixa Antigos Privilégios. Trata-se de uma banda formada por jovens do Recife, que agrega o rap à música popular regional. Formada em 1992, tem três cds gravados, o último com indicação para o Grammy. São parcerias como essas, que afirmam cada vez mais, a competência do homem do nor deste brasileiro.”

Renato Phaelante


“O velho apartheid populares e eruditos é derrubado por Tábua de pirulito, o quarto disco do grupo pernambucano SaGRAMA. Mas trata-se de uma demolição sutil, integradora, onde os dois canais fundem-se numa proposta que o diretor musical Sérgio Campelo, autor da maioria dos arranjos e de cinco das 17 faixas, identifica com o conceito armorial. Ex-integrante (durante três anos) do Quarteto Romançal, vinculado ao movimento fundado pelo teatrólogo Ariano Suassuna nos anos 70, Sérgio assinala linhas paralelas com esse ideário, a partir da formação clássica do SaGRAMA. Criado em 1995 no Conservatório Pernambucano de Música, o grupo confere tratamento ca me rístico à música popular nordestina, incluindo a folclórica. Em Tábua de pirulito há até uma estilização de música indígena, na faixa Cauin. Três vozes se repetem em situações diferentes, um flautim emula a gaita enquanto o ritmo é palmilhado por maracas, ‘instrumento de percussão comum aos índios fulni-ô de nossa região’, descreve. Com o nome garimpado numa escala musical de origem indo-européia, o SaGRAMA tem feito carreira à margem do mercadão com discos encaixados em projetos de incentivo cultural. Mas desde o de estréia, em 1998, que levou o nome do grupo e vendeu 11 mil cópias, o SaGRAMA moldou seu público. Em 2000 foi lançado Engenho e no ano passado o país inteiro ficou conhecendo sua trilha sonora para o filme O Auto da Compadecida, adaptado da montagem de TV de Guel Arraes da peça escrita por Ariano Suassuna. Devotado ao acústico, o noneto é formado por Campelo, Frederica Bourgeois (flautas), Crisóstomo Santos (clarinete), Cláudio Moura (viola nordestina), Fábio Delicato (violão), João Pimenta (contrabaixo), Antônio Barreto (marimba), Gilberto Campello e Tarcísio Resende (percussão). ‘Mas todos tocam vários instrumentos o que dá ao grupo uma boa opção de timbres’, define o líder.

A propósito, os arranjos têm a preocupação de não identificar a condução do tema por um único instrumento, evitando a linearidade. Há freqüentes contrapontos, jogo de vozes e a intervenção de instrumentos pouco usuais como marimba, vibrafone, clarone, xilofone, viola nordestina, contrabaixo, flautas de vários tipos (o que permite o recurso uníssono muito usado nas primitivas bandas de pífanos) e a popular rabeca. Na área de percussão a folia é ainda maior: tom-tons, timbales, gongo, latas, prato suspenso, multi-ganzá, chimbal, ovinhos, moringa de três bocas, caixa-clara, alfaia de macaíba (típica do maracatu), caxixis e obviamente pandeiro, triângulo e zabumba. ‘No novo disco procuramos buscar gêneros que não entraram nos anteriores’, separa Campelo, indicando entre eles o reisado da faixa de abertura Guerreiro do além-mar, a chegança de Gajeiro (com participação especial do Quinteto de Cordas da Paraíba) e a Louvação, que nomeia a composição lenta, evocativa de Cláudio Moura, pontuada por vibrafone e surdão. Pé de camurça, por sua vez, baseou-se na ‘La ursa’ a brincadeira de crianças que saem batendo lata e pedindo dinheiro no carnaval do Recife. Outra jóia do repertório é a Rabecada, composição do maestro de frevos José Menezes (não confundir com seu homônimo mago das cordas, radicado no Rio). A elaborada trama orquestral (onde dialogam flautas, clarinete, viola, violão, baixo e percussão) permite ao solista convidado, Yerko Pinto (1º violino do referido Quinteto de Cordas da Paraíba) altos vôos no instrumento considerado primitivo. Há ainda temas de latitudes estéticas diversas como o baião Cantiga, o quadrilheiro Carnavá na roça e o agalopado Lamento ribadêro. Não falta nem o básico Luiz Gonzaga numa composição menos difundida, a toada Légua tirana (parceria com Humberto Teixeira, lançada em 1949), relida num dolorido contraponto de valsa. O disco é dedicado a outro criador de peso, o maestro Dimas Sedícias, da cidade de Bom Jardim-PE, que faleceu em setembro passado, aos 71 anos. ‘Ele era um entusiasta do SaGRAMA. Aparecia nos ensaios, fazia arranjos, trazia músicas novas’, recorda Campelo. Do celebrado, além de Pé de camurça (com Ro mero Amorim), foram escolhidas Papagaio de papel e Brilhareto. Outros eloqüentes exemplos que acasalam com perfeição o eco das ruas nas salas de concerto.”

Tárik de Souza


João Falcão


“O nordeste brasileiro continua dando provas de imensa vitalidade cultural. O trabalho de seus artistas – instrumentistas e compositores – no campo da música é o mais significativo atestado de sua riqueza cultural. Uns menos e outros mais declaradamente, mas todos vimos nos beneficiando das fontes populares da cultura nordestina. O mais novo trabalho dos jovens músicos do SaGRAMA é uma evidente demonstração da filiação que esses artistas têm para com a música do seu povo. Gêneros musicais já tradiciona lizados como o frevo, o maracatu, o baião, etc, e outras formas reelaboradas de música instrumental são apresentados por um grupo de instrumentistas afinados em colaborar verdadeiramente com o espírito da música. Contando com um variado naipes de instrumentos, os músicos do SaGRAMA avançam na direção de uma música cada vez mais refinada, mas que não perde sua capacidade de seduzir. Digo isso porque a sua música tanto se escuta com os ouvidos quanto com o corpo todo. Agora memo, enquanto escrevo essa apresen tação, escutando as músicas que compõe o cd, já me levantei umas duas ou três vezes para saracotear o corpo no meio da sala. O trabalho do SaGRAMA vem contrariar esse conceito tão difundido pela ideologia cultural dominante de que boa arte é chata. Esse é mais um desses deformados e deformadores conceitos que nos empurram diariamente pela mídia massifica dora e irres ponsável. A música do SaGRAMA é música boa. É aquela música que divertindo-nos, alegrandonos, comovendo-nos também nos educa e eleva.”

Antonio Nóbrega

“Indubitavelmente, a música instrumental nordestina ocupa hoje

um lugar de destaque na discografia musical brasileira. A partir do Movimento Armorial, conduzido por Ariano Suassuna, nossa música instrumental começou a ocupar importantes espaços na mídia, atraindo para suas fileiras não somente vários estudiosos do assunto, como também os compositores e intérpretes das gerações que se seguiram ao movi mento. O SaGRAMA, excelente grupo formado por professores do Conser vatório Pernambucano de Música, não poderia ser exceção à regra: eles pertencem de fato à nova gera ção dos artistas influenciados pelo Movi mento Armorial. O variado elenco das músicas apresentadas neste CD, pela sua força expressiva, traduz a essência musical da alma nordestina. As obras aqui executadas demonstram com clareza a excelente virtuo sidade dos componentes do grupo, intérpretes de grande versatilidade que são. Com a certeza de que os apreciadores da boa música saberão ‘curtir’ o recardo aqui dado pelos componentes do SaGRAMA, só lhes resta esperar que venham mais outros CDs do grupo: um novo deleite para os que apreciam a boa música instrumental. Gratificados estarão certamente os compositores que tomaram parte no CD. De parabéns os produtores do disco, os parceiros culturais que acreditaram no projeto, e ainda LG Projetos & Produções Artísticas, cuja participação foi decisiva para lançar o excelente som do grupo SaGRAMA na discografia brasileira.”

Clóvis Pereira


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